Crônica da Quinta
De Marré Deci
As lembranças povoam nosso imaginário; mas talvez a insônia, herança de longo período de trabalho noturno, desencadeou essas viagens para dentro de mim mesmo.
Antigamente contávamos carneirinho ou fechávamos os olhos puxando o lençol para evitar os seres monstruosos criados na inocência.
Como sempre consigo ver um lado bom em tudo, a insônia me transportou novamente para minha meninice e foi uma viagem agradável.
Estava agora na rua de minha infância, a brincar em uma destas raras vezes que minha mãe permitia, pois sempre fui muito recluso e cheio de obrigações de adulto.
Não tínhamos posses, inclusive uma rápida visita à minha casa se notava que ninguém ali construiu riquezas, não aquelas sob a ótica do mercado, da especulação financeira ou coisa semelhante.
Éramos pobres, humildes e as brincadeiras vagavam neste mesmo estilo, pois, não tendo acesso aos brinquedos caros, era a criatividade nossa fiel brincadeira.
Uma brincadeira era sempre presente e vinha acompanhada de uma música e coreografia: “Eu sou pobre, pobre, pobre de marré, marré, marré / eu sou pobre, pobre, pobre de marré deci”.
Era o auge. O ápice lúdico da noite naquela rua pouco iluminada e de chão batido.
Repetíamos esse refrão com tanta ênfase. Era a história da minha vida, era a história de tantos outros garotos da mesma idade e que partilhavam daquele mesmo mundo, o nosso mundo “desencantado”.
A pobreza era um detalhe, porque o que nos movia mesmo eram os sonhos.
Sim, quando se é pobre uma das poucas coisas que não se pode perder é a capacidade de sonhar, aspirávamos que o refrão da brincadeira fosse outro e que a palavra pobre saísse de cena para outra — rico.
Para o bem da verdade, nunca tive a ambição de ser rico; pelo menos, não aos moldes que se propala a riqueza. Nossa ambição era ter uma casa, uma bicicleta, um carrinho de plástico para brincar, comer bem e tomar refrigerante até a barriga alumiar.
Nesta madrugada, sob o peso da insônia e com outros olhares, faço uma análise crítica desta brincadeira infantil e inocente: “perduram os meninos que entoam a cantiga de pobre, com poucos sonhos e outros dissabores”.
Uma rápida pesquisa no pai dos burros — não o dicionário, mas, sim, o site que tudo sabe — me trouxe explicações sobre as raízes desta brincadeira: “Jogo de Rico e Pobre” e procede da Europa Nórdica. No Brasil: “Pobre de marré deci”, Presente!
Carlos Ferreira da Silva – Acadêmico de Pedagogia – UNIFIP – carlossilva@pedag.fiponline.edu.br