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Os dias úteis nos obrigam a acordar cedo. Normativamente. Há agendas profissionais a cumprir. O peso dos anos também nos obrigam a madrugar. Costumo dizer que o despertador natural são as dores que, literalmente, expulsam os ossos já “bem vividos” da cama. Mesmo aos sábados, dias ligeiramente diferentes, os despertadores “ossário” dão sinais ou tal motivação vem dos burburinhos matutinos.

Acordávamos até poucos dias com o arrulhar de pombos. Pelas horas primevas, o vizinho Gilberto, do segundo andar, já andaria a bater com algum objeto na janela para espantá-los. Hoje já não o faz. Resolveu a parada. Como primeira providência, tirou o sossego dos penosos com naftalina. Em seguida,  vendou o já desnecessário e demodê nicho para ar-condicionado com gesso. Os pombos migraram. Não teremos mais arrulhos nessa crônica, portanto, nem nos sábados que nos aguardam, cheios de sol ou não.

Não nos livramos, contudo, do chap-chap das havaianas e toc-tocs dos tamancos das pessoas que militam aos sábados, enquanto se preparam para sair  e fazer girar a roleta do comércio. Os pássaros liderados pelos gritos estridentes, com o bordão “triste-vida” dos bem-te-vis, que dão salves ao nascer do dia estão ativos. Os nossos se equilibram em fios de alta tensão, bem defronte às nossas atuais janelas. Um galo sobrevivente lança ao ar atrasados toques de  alvoradas. Reminiscência viva de um tempo onde haviam mais galos a  contribuir com os primeiros acordes para  tecelagem dos dias.

O mundo anda muito barulhento e, assim como a luminosidade das cidades apaga as estrelas, a redoma de som que nos aprisiona minimiza a potência vocal dos galos. À hora que eles cantam para despertar, a cidade já anda a se mover. As obras civis começam e os notívagos arranham chaves nas portas rangentes das portarias dos modernos condomínios. A vida é regida por outros ritmos. As rotinas urbanas obedecem fielmente a outra lógica, bem mais mecânica e humanamente estressante. Somos atravessados por outra categoria de sons, que tende a nos situar entre o alarmismo ritual e a desatenção tácita.

Thiaguinho, neto da dona do terreno que hoje abriga o prédio onde moro, lembra (se não lembra, os parentes próximos alimentaram seus dados) nos conta que a residência parecia um sítio, árvores e criações. Alongo a vista e só vejo prédios. Da vontade de cantar Belchior a dizer do tempo em que havia “galos, noites e quintais”.

Hoje há solidões sólidas, poucos “bons dias” além dos casmurros protocolares e uma vontade residual de declarar guerra  aos pombos, rolinhas, bem-te-vis, galos e gentes que brigam, aos gritos, pela sobrevivência. Conheci gente que, pelo galo cantar perto, comprou-o e o pôs na panela.  Não creio que a sanha contra os “penosos cantantes”, seja movida por uma questão sanitária. Nada disso. É pelo fato de serem madrugadores e seguirem uma regra ancestral, talvez mais naturalista e sintonizada com os ritmos naturais do planeta.

Voltemos aos sons da rua. O vendedor de vassouras passa e anuncia seu produto, em todas as suas variedades, num dialeto particular e impronunciável. Ele passa por volta das oito horas. Às oito e trinta espere e, eis que uma voz se ouve ao longe. É o vendeiro de produtos de limpeza que se aproxima. Nenhuma palavra se materializa em seu “pregão mourisco”, mas remetem à tradição: sábados, desde que me entendo por gente, são dias “oficiais” de faxina em casa.

Os pregões ancestrais sobrevivem tais quais os galos. Seu canto invade as manhãs, mesmo que selecionem cuidadosamente os dias de acontecer. Anunciam aos berros os produtos que negociam e, desde o comecinho da rua, é possível ouvi-los. Ouço o galo, imagino quintais como o da infância, curto os amanheceres e, já pelo meio do dia, espero, com certa ansiedade, o pregoeiro da fábrica de picolés que, já meio cansado e lento, passa pelas redondezas logo depois do meio do dia que se arrasta.

Por Edson de França

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