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Está cada vez mais difícil sairmos de um período festivo qualquer sem uma polêmica. Acho que nem a tal “confraternização universal” de final de ciclo escapa. O nosso São João, porém, se supera a cada nova edição.

Terminada a festa é a hora de analisar o estado de dilapidação herdado, contabilizando as polêmicas geradas durante o transcurso. Se bem que não somos disso, não é nossa natureza. Somos mais capazes de sobreviver às polêmicas e seguir em frente, sempre no aguardo das novas rodadas de desacertos.

Ano que vem, certamente, algumas voltarão e novas hão de surgir.

Um quiproquó qualquer, um mal entendido, uma transgressão mínima que for às “tradições”, e está criado o cenário da contenda.

A edição dos festejos juninos deste ano já assomaram no horizonte sob as bençãos da deusa polêmica.

O cardápio de entrada foi aberto com a divulgação antecipada dos investimentos das prefeituras em seus eventos. A mídia, imprensada entre a justiça dos Tribunais e a ardis festeiros dos alcaides, se esbaldou nas denúncias. Sites e blogs, noticiosos ou sensacionais, fizeram sua parte. Despertaram as “vozes roucas das ruas”, criando poucos “anti São João” decerto, mas alimentando o verbo dos “esclarecidos” de ocasião.

Afinal, Santa Rita poderia ou não fazer o São João? Estava liberada para “investir” ou a festa foi embargada?

Depois dos folguedos, etílias, artifícios e mega atrações pagas a preço de ouro, o julgamento dos “gastadores do erário público” parecerá rolar em “segredo de justiça”. O povão jamais saberá se foi realmente traído ou se seus mandatários seguiram a cartilha do “gestor” cioso, gastando só o necessário, sem comprometer muito as áreas básicas dos serviços públicos.

Outras fontes férteis de polêmica surgem no andamento do “andor” da festa. À medida que o cortejo festivo em homenagem aos santos avança, os fiéis vão se digladiando por questões que envolvem o tradicional versus o “moderno”, a vitrine versus o ocultamento, as raízes versus o bricolage consumista.

Em tempos idos, Campina Grande e Caruaru já protagonizaram uma “guerrinha particular”. Uma disputa regional em nome da pureza, da grandeza e da primazia de suas respectivas festas. Hoje, a impressão é que a contenda anda minorada e, sob imperativos comerciais, as duas disputam o posto de quem monta a programação mais bizarra em termos de variedade musical.

Raízes pra que te quero e a nova onda pode ser explicado pelas dimensões mercadológicas que atingiram ambas.

Para ser “maior” ou “melhor” é preciso atrair gente, movimentar multidões. Mais gente quer dizer mais gasto, mais consumo, mais ocupação de leitos, mais movimentação do trade turístico e por aí vai. Por esse prisma, já aparece aquela versão de “Asa Branca” pelos meninos de Liverpool, afinal, são mais atrativos que quem cantou o velho Vassoural.

Sobre isso, a cantora Elba Ramalho até atiçou a polêmica, classificando de “festival” algumas festas de São João nordeste afora. O certo é que o modelo de festa de massa já está formatado e será reproduzido por anos, até que se esgote o veio como se dá numa mina de pedras valiosas. A cultura e a tradição são o motivo, nunca o “algo” a ser cultuado, mantido, reavivado a cada ano.

Quem quiser fugir das multidões raivosas e porosas aos ritmos da moda, crie circuitos alternativos ou se enterre num sítio, abra a caixa de vinis e divirta-se com a tradição aprisionada em melodias antigas.

Nem toda polêmica é equacionada. Melhor, equacionar é macular sua essência. Polêmica boa ou deixa riscos e rancores indeléveis na alma ou é varrida do mapa.

Ano passado, Flávio José abriu uma ferida de difícil cura: reclamou da redução do tempo de seu show em favor do cumprimento de agenda de “estrela nacional”. Redução de tempo de show, esquecimento dos artistas locais, más condições de trabalho e formas de tratamento são já quase tradições dos produtores de eventos que aportam pelo nordeste.

Exclusão e divisionismo – este também apontado por alguns também com relação ao público – que se acirram à medida que a festa popular ganha contornos gourmet ou de “griffe”.

A polêmica da hora se armou em torno da gravação de um “forrófunk” pela paraibana Juliete. Nele, o funk, com a “poética” que lhe é peculiar, namora com a canção Pagode Russo (Luiz Gonzaga/João Silva), sucesso do rei do baião. Quando digo namora é desses namoros amostradinhos, com profícua troca de chupões.

Não quero polemizar, mas estranhei gente “nem aí pra tradição” classificar a “ousadia” como lixo, ato impensável, um sacrilégio.

A polêmica se situou entre dois pólos: a usurpação e a profanação. O primeiro envolve autorização, envolvendo valores e direitos sobre a obra; o segundo, a descaracterização da música.

A música é, essencialmente, matéria rearranjável. Ou seja, uma célula musical permite variações quase infinitas. Há, por exemplo, gravações recentes do mais “autêntico forró” onde captam-se revérberos da Jovem Guarda, o que poderia sugerir apropriação indevida dos acordes daquela. Para não esquecer, esta mesma onda musical foi tomada, em certa época, como algoz da música nordestina, levando o “rei” a compor versos desencantadores para “cabras que usam pulseira, no pescoço um medalhão”.

No mais, com todo respeito à artista, a transgressão musical há de passar. Ficará no seu repertório o tempo suficiente para cansar alguns bumbuns. A natureza da música em nossa época tem essa marca: a rapidez de produção (não se importando muito de chupar, samplear, descaracterizar, reler ou seja lá o que for) e a distribuição massiva para consumo também imediato.

Graças que dispomos de um repertório ancestral básico que pede para ser revisitado; permitindo o consumo “in natura, no original ou em modelitos “ultraprocssados” ao gosto dos ouvidos mais moderninhos.

Quanto à primeira questão: a usurpação, o uso sem autorização expressa dos dignitários dos direitos, penso, que a dignidade prevaleceu. O neto do rei do baião reclamou, veio a público, a cantora se esforçou para conversar sobre o caso e uma palavra dele fechou a polêmica: “Esse jogo é muito maior do que a gente. Não é sobre nós. É sobre valorização. Ela sabe bem disso. Assim como eu é uma amante da nossa cultura”.

Penso, finalmente, que o Daniel Gonzaga levanta uma lebre importante. Anda em curso um jogo bem maior que nós, nossa vontade, nossas forças e mecanismos de resistência, nossa reminiscência de um passado posto como desenho, obra de um artista naiff que levamos aceso nos sonhos. A polêmica em si é só o índice, um sinal claro de que um rolo compressor, invisível e sutil, se impõe e nos desafia.

por Edson de França

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