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Popularmente costuma-se atribuir a palavra cachorro àquela pessoa  que faz lambança. Foi infiel, faltou a um compromisso, cometeu alguma desatenção, foi indelicado com as “migas”, “migos” ou parentes e lá vem o adjetivo pouco elogioso de “cachorro”, no sentido de “cão dos infernos” mesmo.

Enfim, “cachorro” quer dizer aquele/a que fez “cachorrada”, ou seja, espalhou sujeira em atitude similar a dos porcos, aqueles que se refestelam na lama e parecem sair felizes. Pelo lado humano, atitudes de arrogância, soberba e desrespeito ao próximo também entram nessa categoria.

Vivemos atualmente, contudo,  a idade dos pets. Ou, melhor, a era da ascensão de animais ao nível da parentela, com lugar harmoniosamente arranjado na árvore genealógica das famílias. Nunca a civilização viveu tamanha paixão pela companhia animal. De todas as espécies, vale ressaltar.

Importaram até este denominativo para redesignar os antigos bichos de casa. Com a patente de pet, incluí lagartixas e simpáticas osgas que conservo em minha jurisdição na categoria “estimação”, por afinidade e tacitamente.

Dentre os pets, contudo, havia de ser o cachorro (o bicho, muito além do adjetivo) o mais preferido. Nunca se criou e se cobriu o animal de tantos cuidados como agora. Portanto, desde logo, utilizar a palavra cachorro significa agredir à constituição familiar.  Classificar qualquer sujeira como “coisa de cachorro”é quase desrespeitar um membro das famílias, um ente bem próximo.

Por essa via, os dogs atualmente encaram um processo de assepsia corporal tão rigoroso que disputam, em pé de superioridade até, com os bebês da espécie humana. Análise de pedigree, banho, tosa, estética, manicure, plano de saúde, creches e dog walkers (passeadores) são alguns dos mimos com que se acariciam a pele, o organismo e o ego dos dogs.

Há cães andando por aí com um ar de superioridade e grau de entojo ímpares para seusproprios pares e humanos menos aquinhoados.

Para o ambiente privado, os lares, os pets são adestrados a se privarem das necessidades básicas de qualquer animal. Há um mercado de provisão a esses cuidados. Tapetinhos, terrinhas especiais e tais servem para condicioná-los a manter a limpeza interna das residências. Ironicamente, o mesmo comportamento não é replicado, contudo, quando os pets são levados aos espaços de convivência, onde seus prestimosos tutores os levam a passear.

Pelas convenções de urbanidade não escritas, os donos deveriam ser responsáveis imediatos pelas sujidades que seus animais fazem nas calçadas e praças. Mas não é exatamente assim que ocorre normalmente.

O homem supostamente atingiu um estágio mental superior ao desenvolver atenção, cuidar e ser solidário aos de quatro patas. N motivos explicam essa tendência. Aplacar os efeitos da solidão, dos estresses da convivência humana, institucional e das depressões, por exemplo. Contudo, na maioria das vezes, esse mesmo HOMEM faz questão de ignorar o sentido da coletividade e, mais, da solidariedade, quanto a questão limpeza em vias públicas. Flagrante desrespeito aos de sua própria espécie.

Não é difícil encontrar, espalhados por calçadas e passeios públicos, o fruto digestivo dos pets. É da natureza dos cães evacuarem livres, trata-se de um apelo insustentável e inadiável. Por outro lado, apanhar o produto do chão, para manter a limpeza pública e contribuir para a saúde e integridade dos pés e calçados dos passantes, é tarefa de tutor ou pai de pet. Não é fácil ao caminhante andar ziguezagueando entre fezes.

O cachorro definitivamente não tem culpa. É mais uma vítima dentro desse processo de convivência. No final, ultra-asséptico animal acaba sujando mais que os legítimos donos da rua, os vira latas, por pura e inconsequente negligência de seus donos.

A contribuição mínima do cidadão para a limpeza da cidade seria evitar lançar resíduos nas vias. Não adianta pleitear cidades limpas e glamourizar locais onde tal ocorre, se não cuidar do seu próprio quintal. E nem tudo é dever do poder público. Cada cidadão tem que usar do mínimo de consciência para fazer sua parte. Praças, por exemplo, são recintos onde crianças brincam e se divertem, muitas vezes de pés desnudos. Há lugar para pet nesses espaços, claro, mas não para suas fezes.

Em minha rua, em uma pracinha defronte a endereço de alto padrão, o desleixo atingiu o ápice: por lá, agora a decoração horizontal de fezes ocasional, um poste sustém, por dias seguidos, qual árvore natalina, uma porção de saquinhos com o conteúdo fétido da ação intestinal dos pets é fruto da preocupação parcial do humano com o lixo que produz

Ficam lá à espera de uma mão anônima – um abnegado e incomodado vizinho ou um agente público de limpeza, a guisa de anônimo elemental  – que venha dar destinação final aos dejetos. O homem evolui decerto, seus comportamentos sociais contudo não evoluem. Então, quem é o cachorro nessa história, afinal?

Edson de França 

 

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