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As caminhadas matinais, assim como uma viagem cotidiana em algum coletivo urbano, são recheadas de “instantâneos pessoais”. Para quem não teve o prazer de conhecer, essa última expressão, a mesma servia para  nomear uma das seções da revista Readers Digest, que trazia uma série de relatos de leitores narrando flashes verbais disparadas por algum indivíduo diante de situações inusitadas. No nosso caso, os instantâneos disparados a cada manhã são dignos de crônica. Uma não. Várias ao mesmo tempo.

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O público das caminhadas é composto, em sua maioria, por senhoras, sinhozinhos e pessoas de meia idade em geral. Uma parte delas  incapazes de sair de casa sem um terço para debulhar, enquanto destilam aves-marias, salva-rainhas ou ruminanças auto-confessionais dos dissabores da vida.  Completam o séquito, jovens atletas ocasionais, não militantes do esforço contínuo, trabalhadores e, sobretudo, trabalhadoras que utilizam-se de parte do percurso da caminhada como “intervalo lúdico” no caminho da labuta.

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A caminhada, mais que o exercício do despertar matinal, é intervalo para conversas, confissões, reclamações sobre tudo e orações em murmurinhos. As mulheres, percebe-se, são protagonistas nesse sentido.

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Há grupos contumazes de dois ou três sinhozinhos que seguem empilhando comentários sobre os sucessos veiculados pelo Jornal Nacional, comentando-os, ou reclamando do valor da aposentadoria. São minoritários, contudo. As mulheres, das senhorinhas de sobrinha às diaristas, donas do pedaço e da voz, mandam ver no verbo. É por meio delas que ficamos sabendo dos bastidores do serviço doméstico, por exemplo, suas práticas e rotinas. E do capítulo inteiro das insatisfações.

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Já entreouvi históricos de enfermidades, questões familiares, desavenças de casal, cuidados de avós com a precocidade sexual das netas, da filha que foi a Portugal e voltou com um pequeno português na bagagem, do perfume francês utilizado para disfarçar “bosta de gato”.

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Durante a caminhada, a vida corre. Adianta alguns minutos de nossas vidas. Coletivamente, mantendo as distâncias regulamentares da afinidade, vamos seguindo. Um “bom dia” largado ao léu sempre corre o risco de encontrar uma ressonância, um murmúrio mal humorado ou um desenho mudo, carregado, desses mal humorados que chamam tempestade ou não evacuaram antes de sair de casa. Não importa. A manhã nos recebeu. O divã em campo aberto se abriu. Estamos aqui, graças, e isso é palco da vida que se abre para mais um dia na vida do sol.

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Quero crer que a vida é palavra. Palavra proferida é vida em movimento. Se transformando, metamorfoseando-se, avançando rumo ao que só os deuses adivinham. Tá valendo, boy? Tá valendo o desabafo da vovó, seus orgulhos e a lamentação de suas perdas, as preocupações da super-mãe assoberbada, a conversa animada do grupo de senhores e a reclamação trabalhista da diarista. Tá valendo, boy. Segue em frente, ouve, que a vida e movimento de vozes, versos e versões sobre o desenrolar dos dias e dos ofícios fiéis.

Edson de França – Jornalista, cronista e poeta

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